Desabafos sobre batotas

"Então, pá? 'Tás a fazer batota? Foda-se, isso não é jogar, perde a piada toda". Nunca ouvi porque publicamente mantive-me sempre muito caladinho quanto às perigosas e arriscadas manobras contra a ética e pureza dos videojogos, protagonizadas pelas batotices que lhes faço desde que recebi o meu primeiro Game Shark. Sim, eu uso códigos. Cheats. Trapaças. O que lhe quiserem chamar. E sou muito mais feliz no meu hobby desde que o comecei a fazer. 

Tudo isto, na verdade, inicia no dia em que recebo, depois de muitos dias de choradeira junto do meu pai, um CDzinho muito engraçado para jogar jogos de outras regiões e colocar códigos Gameshark nos jogos da PSX. Não me lembro do nome do CD, mas lembro-me de o ter comprado numa loja online para aí entre 2001 e 2003. Ya, ecommerce no início do milénio. Parece mentira, mas é bem verdade.

Do processo em si não me lembro de quase nada: só de ver o anúncio numa daquelas páginas da Mega Score cheias de aparelhómetros com cartuchos Flash, cartões de memória de todas as cores e feitios, volantes a imitar as suas contrapartes da Fórmula 1 e este pedacinho de abertura ao mundo da Pirataria que seria TODO UM OUTRO TEXTO E EU TENHO QUE TREINAR  O CONTROLO DA MINHA DIVAGAÇÃO EMBORA CHIÇA, NÃO É ENGRAÇADO COMO PODÍAMOS PARTILHAR DE FORMA LIVRE E COMPLETAMENTE ARBITRÁRIA PRODUTOS QUE NOS PERMITIAM JOGAR CÓPIAS DE JOGOS, NUMA REVISTA QUE PROMOVIA A COMPRA DESSES JOG... bom, como eu estava a dizer. 

Fui ao site, o meu pai verificou 30 vezes se era fidedigno e se não ia ficar a arder com os 20, 30 euros da compra. Não ficou e quando chegou, fui imediatamente ao Gamefaqs procurar códigos para colocar no Street Fighter Alpha 3. Não porque os quisesse utilizar especificamente naquele jogo, mas porque queria ver se funcionavam. Oh boy, se funcionavam: de repente, as barreiras invisíveis e opressoras do tempo real e da minha capacidade de concentração foram à vida: posso jogar como EU quiser, quando EU quiser? Dali foi um pulinho para, através da emulação, começar a procurar o mesmo tipo de ferramentas para as roms que tinha no meu Pentium 4.

Claro que, como qualquer droga, depois deste pico desmesurado, tive uma queda gigantesca, especificamente no Pokémon Ruby, quando decidi começar a partir o jogo com códigos para atravessar paredes, ter Rare Candies infinitas, o Pokédex completo antes da primeira cidade, todos os Pokémon a nível 100. Depois deste acesso de loucura, completamente inebriado pelo poder, qual Arceus sob o seu domínio de criaturas que inexplicavelmente até aos dias de hoje são miniaturizadas em pequeninas bolas durante horas e horas e horas e horas e HORAS a fio sem comida, sem bebida, sem espaço, sem informação, porque realmente... que raio acontece a um Pokémon naquela bola? E se fosse um cão? Poderá a Team Plasma ser a IRA do universo da Game Freak? Quando é que expli... PORRA DIVAGUEI DE NOVO DESCULPEM - o que quero dizer é que depois disto tudo, senti apenas um gigantesco vazio de cada vez que pegava no meu save porque o desafio tinha desaparecido. A chama esfumou-se, digamos assim. 

Se tinha tudo, de repente, com vários cliques, sem mais de 5 minutos de jogo, então porque é que iria continuar? Decidi parar com as batotas durante alguns anos e, com a fúria da adolescência e a irreverência de quem ainda acha que molda o Mundo que o rodeia, passei diversos clássicos da época como o Final Fantasy VI, o Chrono Trigger, o Final Fantasy IX sem um pingo de batotice, entre muita outra coisa que me foi passando pelas mãos. Até ter conseguido comprar uma Nintendo DS e, com ela, um flash card para poder colocar roms. No firmware desse flash card, existia uma opção para cheats pré-configurada. Aquilo era, na realidade, uma desculpa para jogar o Pokémon Platinum e o Pokémon Heartgold. 

Tentei sem batotas, primeiro. Juro que tentei. Mas o Carlos da faculdade e dos 20's não era o mesmo: mais distrações, mais transportes, mais responsabilidades, menos e menos e menos energia para hobbies que exigissem repetição e concentração que não envolvessem copos, cervejas, guiões, câmaras de filmar ou películas de sci-fi perdidas dos anos 70 porque Ohhhhhh, a pica que dava chegar a uma aula na faculdade e utilizar expressões como "direção cinematográfica esplêndida" ou "um comentário assaz pertinente sobre a condição humana" sobre filmes que, muitas das vezes, só eram assim para críticos de sofá que queriam substituir pensamento e reflexão por vocabulário cuidado, numa de passarem por inteligentes e superi... Para dizer que, se em miúdo já tinha alguma dificuldade com atividades que exigissem memória e concentração, em jovem adulto a tarefa era bem mais hercúlea. 

Assim que lá fui eu, de stylus em punho, selecionar algumas cheats de novo. 100% catch rate, 2x exp, 2x EV, etc etc. Nada que me partisse o jogo, mas que o tornasse menos... cansativo. Mais permissivo. Mais simples. As horas nas camionetas entre Lisboa e Setúbal transformaram-se, de caminhos adormecidos e livros esquecidos, a períodos de redescoberta do gozo que os videojogos e a saga Pokémon me proporcionavam, abstraído dos olhares ainda críticos de quem trazia parafernália gaming num transporte público lisboeta. Daqui, pulei para o Dragon Quest IV na mesma lógica e de repente... estava de volta. New Super Mario? CHECK. Fallout 3? OH YEAH. Final Fantasy X? INCLUSIVE O RAIO DO CHOCOBO. Até o descanso estudantil ter sido substituído pela rodinha suja, cheia de grilhões e lombas escondidas para o corredor mais incauto chamada MERCADO DE TRABALHO.

Ohhh, aquelas promessas vãs de dinheiro, casa, comida e liberdade para desfrutar de qualquer atividade cultural ou lúdica, não era? Tipo os romanos no Astérix: Alistem-se, realistem-se, diziam eles, sempre de nariz a pingar de sangue depois de mais uma sova brutalmente humorística proporcionada pelos nossos queridos e irredutíveis gauleses, só que neste caso é a cenourinha da independência financeira para podermos dedicar tempo igual e saudável ao ócio, que na realidade não existe, quando equilibrado nos pratos e balanças da responsabilidade da vida adulta, principalmente se estiveres do lado errado da fronteira de classes. 

Enfim, foram muitos anos a ambientar-me à inescapável verdade da racionalização do tempo livre, reclamando, entre posts odiosos nas várias redes sociais a quem entreguei - bom, e entrego, para ser honesto - o pouco que me resta do miúdo que passava horas a criar histórias e personagens baseadas nas formas das pedras da calçada. 

E os jogos, pá? Pois, boa pergunta, porque a tangente ameaçava tornar isto mais uma lamúria de "aiiii, se soubesse o que sei hoje", não é? Os jogos, olhem: lá ficaram. Com menos tempo, deixei também a portátil de lado para, junto da Xbox e da Playstation, tentar recapturar o mesmo encanto de garoto, embora com franca dificuldade. Não consegui terminar o Witcher 3, embora tenha passado por várias tentativas. Nem o Bloodborne. Nem o Final Fantasy XV que adquiri no dia de lançamento. Já nem o Pokémon me conseguia tirar deste fastio de filmes por ver, livros por terminar, jogos por desfrutar, vida por viver. Depressão sem nome, porque no meu dicionário substitui-a por "normalidade". Até ter jogado Kingdom Hearts. 

Jogado não é a palavra certa: devorado de forma sôfrega mais do que uma vez cada um dos vários títulos seria mais correto. E com ele, regressaram os guias. A agora 3DS viu-lhe ser ofertada outro flash card com custom firmware e... ya, adivinharam. Cheats. Batotas. Truques. A esta, juntou-se o PC e os trainers com os jogos que por lá habitam, mais as memórias perdidas no Retroarch. E uma verdade, também ela, inescapável sobre mim. 

Mais que a capacidade de fazer batota, prezo sobretudo a liberdade de poder moldar a experiência à minha energia. Com o passar do tempo e o conhecimento sobre como funciono, melhor percebo que a minha única parecença com um metrónomo é também pender para vários lados, embora sem ritmo ou lógica. Saber que o meu humor, concentração e prazer retirado do meu ócio flutua ao segundo permite-me também aceitar que tão depressa passarei horas a farmar um monstro no Castlevania: Circle of the Moon para ganhar uma carta de forma legítima, como colocarei um truque para obter 999 de cada elemento no Ni no Kuni para acelerar o processo de criação de monstrinhos. E está tudo ok. 

O que não é o descanso senão a porta blindada e temporária que separa a inexorável fortaleza blindada do mundo real do manipulável e individual do mundo na nossa criatividade, não é? Que numa rotina diária caótica e opressora, possa existir um pacote de ar que nos permite respirar como queremos e recuperar energia para regressar ao caminho.


Comentários

Mensagens populares deste blogue

Sonic Origins